Salvate Amice!
Há uns meses largos entrei numa loja de discos, uma discoteca, e pedi um que andava para comprar fazia que tempos. O que me restringia era o facto de ter outra versão do mesmo, uma oratória. Tenho, nalguns casos, várias versões de óperas (com moderação), mas no caso de oratórias, tal facto acontece muito poucas vezes. No entanto, eu sabia que desta vez valia mesmo a pena. Valia pela voz, pela voz do soprano, a da Kathleen Battle! Tive a sorte de vê-la num recital aqui em Portugal no CCB e confirmei as minhas impressões: uma voz de soprano lírico, uma voz redonda, generosa, dourada, quente. Quando, em palco, depois de umas paragens (estudadas?), mas que caíram bem por causa do seu sorriso, que a faz muito mais nova, começou a cantar e a voz passou por cima da minha cabeça e voou pela sala como se, ao sair da sua boca, se tivesse tornado num ser independente, que já não lhe pertencia, quase entrei em transe. Na loja, dizia, pedi o disco: "Bom dia, queria saber se têm a versão da Semele, que pronunciei à inglesa uma vez que as oratórias de Händel são cantadas, como sabem, em inglês, Sé-me-li". Depois de algum desentendimento, lá chegámos a um acordo fonético de compreensão e consegui a última cópia que tinham, que agarrei como se de um filho pródigo se tratasse. Foi das melhores compras que fiz. Já tinha ouvido muitas vezes esta versão em casa de amigos. Agora oiço mais.
Kathleen Batte, americana, teve uma carreira fulgurante na Metropolitan Opera House, conseguindo brilhar em "papéis secundários" de óperas do século XVIII, com a ajuda de James Levine. Mas também "estrelou"! Cantou em Boston, noutras cidades e visitou outros países. Cantou para o Papa João Paulo II e, mais recentemente, para o esclarecido Benedicto XVI.
Nos anos 90 correu o boato (correspondente à verdade?) que ela se tornou difícil, caprichosa, que chegava atrasada aos ensaios, que apostava com as outras estrelas quem era o ultimo a chegar aos ensaios e coisas deste género, que era desagradável para com os cantores secundários, gossip deste teor...
Vivendo nos tempos que vivemos, de $$$ e de pseudo-poupanças, governados por pessoas que subalternizam o bom gosto porque não o têm, o General Manager da Metropolitan Opera House, Joseph Volpe, que começara na Met como carpinteiro, despediu-a. Levine calou-se. E nós, aqueles que gostamos de Música, ficámos talvez sem a melhor soprano lírico do fim do século XX! Nos anos 50 do século passado aturava-se tudo à Callas; agora não, porque a arte é comércio, uma vez que os directores financeiros e os políticos são merceeiros. Uma nota positiva para isto não ser tão negro, talvez porque estoutra cantora devia ter um feitio "comme il faut" e, coitada, era feia; ficámos, felizmente, até ao fim da sua carreira e da sua vida, com a melhor, na nossa opinião, soprano lírico ligeiro do século XX, a Dame Joan Sutherland.
De ti, Kathleen, resta-me o consolo, grande, da memória daquele serão no CCB (nunca te vi na MET), a companhia de óperas gravadas, desta tua fantástica Semele, dirigida pelo John Nelson, que oiço em casa e… no meu iPod!
Recomendo, Amici!
Valete
Raulus Antonius